Entrevista Zé Capina

Entrevista realizada por Aida Maria da Silva a Luiz Gonzaga (Zé Capina), trabalhador rural da Comunidade do Livramento, na rodovia TransCametá. Ele é um dos primeiros militantes do movimento sindical rural que começou todo um processo de luta da organização dos trabalhadores e, também, de resistência com relação aos danos, problemas causados pela Barragem de Tucuruí. Ele vai falar da memória que ele tem desse período, que vem do final da década de 70, até os dias atuais.

Cametá, março de 2018

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Zé Capina – Bom dia, eu comecei a participar do movimento de organização comunitária sindical e até mesmo política, a partir do início dos anos 70, 74, daí pra frente. Participando na Comunidade do Livramento em 74, daí já fundando comunidades que começaram a existir desde 1969, mas não como a gente pregava, era ainda um movimento um pouco lento.

Aida –  Explica o que é comunidade.

Zé Capina – A comunidade cristã de base é um convívio se organizando na agricultura, no movimento sindical, na igreja. Havia nessa época a participação iniciada na igreja, nós vivemos quase que sem essa discussão mais chegada à organização, a gente só se organizava em mutirões para plantar roça, e já a partir da década de 70, 75 em diante, aquele início das comunidades ajudadas pela igreja católica começamos a desenvolver um trabalho organizativo das comunidades, organizando as comunidades não só pra rezar, mas também para fazer as discussões mais assim de organização mesmo da própria comunidade, como fazer melhores mutirões, como fazer um melhor plantio mais organizado, a luta pela terra, essas coisas. A partir daí as comunidades vão se reforçando, e o movimento sindical e, logicamente, nós fomos avançando já com a tendência em organizar os sindicatos. Na época, os sindicatos estavam em mão de pessoas que não tinham tanto interesse, nós até chamávamos de “pelegos”, mas depois.

Aida – Eram interventores.

Zé Capina – A gente achou que muitas dessas pessoas nem eram tanto eram más, mas não tinham informação, eu acredito mais assim, eles iam pra ali com um trabalho para desenvolver, coisas simplesmente que alguém dizia pra eles, mais essa questão política, lá por cima das coisas. Nós queríamos fazer outra coisa, um trabalho diferente, onde as pessoas se organizassem, para fazer outras exigências que a agricultura precisava, os filhos dos agricultores precisavam, questão de estradas, transporte, escolas, melhorar a saúde do povo, uma coisa mais organizativa. Nessa época na década de 70, início de 80, foi muito duro pra nós. A gente fazia isso nas comunidades, e justamente com esse trabalho que nós tínhamos nas organizações das comunidades, a organização foi avançando, foram formando as comunidades, as sociedades agrícolas não foram se eliminando, mas foram se transformando em comunidades, muitas que não existiam. A organização sindical já começou a organizar os sindicatos, e aí com isso a região não só do município daqui de Cametá, mas na região do Baixo Tocantins nós começamos a nos reforçar, a formar um movimento unificado dentro da região. Então a partir daí dessa década de 80, com o movimento, vamos descobrindo que era preciso a gente avançar mais. Não sei se já devo a partir daqui já devo falar sobre o trabalho na barragem Tucuruí, nós tivemos muitas discussões em relação a isso. A própria igreja trazia a discussão nessa época, me lembro muito bem ainda, minha memória que a própria prelazia batalhou muito, criou alguns setores dentro da prelazia, como a CPT, Comissão Pastoral da Terra, a igreja apoiava, trabalhou muito aqui na região aqui através de você que era trabalhadora aqui, funcionária muito boa, com formação adequada pra época, isso ajudou muito, o próprio Raul, a própria FASE ajudou nessa questão da organização um pouco, mas a prelazia foi o carro chefe desta luta juntando as comunidades, juntando os sindicatos, entidades e igrejas que foram se chegando e se organizando para lutar contra o fechamento da barragem de Tucuruí, porque nós tínhamos certeza, através de pesquisas feitas que ela ia trazer um dano muito desagradável para a população, tanto a jusante quanto a montante da barragem. Inclusive, aconteceu nessa época no início na década de 80, um trabalho com os padres, bispos, movimento sindical e comunitário, trabalhamos nisso e não conseguimos o refechamento na época, eles construíram mesmo, mas foi uma luta que nós fizemos para que o povo ribeirinho, o povo de lá à montante da barragem pudesse pelo menos ter seus direitos. Mas a barragem ela foi feita ali, trouxe muitas consequências, antes o rio ficou seco, o rio Tocantins secou. Tucuruí é uma região que fica praticamente a 200km daqui da nossa cidade, o rio estende, mas eu vi o pessoal atravessando de um lado para o outro, da cidade de Tucuruí para a cidade de Meiru que fica ali em frente, a pé atravessando com água pelo meio da canela. Eu vi. Depois foi crescendo, foi feita a represa, muitos peixes foram mortos, animais e caça foram destruídos. Cheguei a ver no museu que existe, vi várias qualidades de animais, aves, no museu que existe lá acima da barragem, embalsamados, vi muitos peixes, a água podre. Com certeza, não foi feito um tratamento, e o povo ainda na época ficou anos e anos tomando aquela água e hoje temos clareza de muita gente que já inclusive faleceu, doentes com consequência, por conta disso, de ter tomado aquela água poluída. Hoje se você vê os ribeirinhos quando eles vão para a cidade como Cametá, Mocajuba, eles não pegam mais a água do rio, eles vão buscar outra água para se servir. Então, nós tivemos esse trabalho, depois foram feitas as próprias escadinhas, as eclusas que eram para ser feitas antes, a limpeza da mata, não aconteceu feito isso, então o rio foi jogado. Muitas arvores, como açacuzeiro, o açacu é uma árvore que tem um cabo, um leite que ele é veneno, e nessa região, acima da barragem, o pessoal conta que tinha muitas dessas árvores por lá, elas foram destruídas, viradas, jogadas numa outra região, elas foram se diluindo, e como isso foram jogadas acima do rio, a erva cresceu, ficou, foi apodrecendo, e trazendo consequências. Várias cidades, que foram para o fundo no caso Ipiranga, Goianésia, muitas cidades aí, cinco a seis cidades elas tiveram que ser cobertas pela água, isso trouxe consequências, e não foi até hoje visto isso. Eu me lembro também que foi feita uma pesquisa na época de nossa luta, que a gente fazia através da igreja, da prelazia e da CPT sobre os peixes e a água, nós estivemos na comunidade de Pacuí para receber essa informação, os resultados dessa pesquisa, era uma empresa chamada Engevix que fez, e eles falaram que tinha uma faixa de uma sete qualidades de peixe que a gente não devia comer, não deveria comer. E que a água mesmo estava com problema, não podíamos tomar. E foi feita uma pergunta pra um companheiro nosso que até já faleceu, o Chicão “mas se vocês ferverem a água, pode tomar”. Mas ele perguntou “escute aí, se derramaram malathon, agente laranja como foi feito” – a informação que nós temos é que foi jogado um detergente agente laranja usado na guerra do Vietnã para desfolhar mais rápido a floresta, claro que vai poluir a água e as pessoas, matar as pessoas, isso foi feito e ele perguntou “você acha que fervendo tira o efeito do veneno da água”? Nessa época, nós levamos um balde, um vasilhame enchia com uma amostra da água, e tinha um tipo de bicho, tipo de asa que andava encima da água, uma coisa muito ruim. Isso para nós na época foi muito preocupante, como até hoje, estamos nessa situação aqui, essa grande demanda, de falta apoio, falta de fazer uma pesquisa mesmo como agora está sendo feita, para poder ver mesmo em que situação se encontra isso. Daí foi a falta do peixe. O peixe mais barato por exemplo daqui da região que servia à população, ele falta, nem que você passe três a quatro meses você fica sem pescar, quando dá a abertura da pesca você já vê que é pouco, você já vê que diminuiu uns 50 a 60% do pescado no município da região. Isso pra nós é uma pena, porque temos um pescado muito fraco, e precisa fazer um trabalho onde se possa voltar a povoação do rio, a despoluição da água. Na época eles diziam que era difícil fazer porque era muito caro para despoluir e não sei o quê. Mas aí é porque isso afeta toda a ação e na barragem vocês gastaram muito dinheiro sem ter noção, ou talvez eles tivessem, tinham noção do prejuízo que ia trazer para as pessoas que vivem, que precisam do rio, que precisam da pesca, precisam da caça. E sumiu tudo.

Aida – Agora, o que você tem de memória de como era a relação dos movimentos sociais, no início dessa luta, com os poderes constituídos, os governos locais, o governo federal? Tinha diálogo, como era isso?

Zé Capina – Era muito difícil, não tinha diálogo, dificilmente, era muito, muito difícil. Inclusive mesmo com a igreja na frente, conduzindo junto com o povo, era muito difícil você marcar uma audiência. Quando marcava era preciso você fazer uma grande manifestação, ficar atacando, e às vezes nem era atendido, porque mandavam às vezes, quando acontecia uma conversa, uma comissão, não vinha a pessoa indicada. Se você fosse falar com o governador do estado, dificilmente ele dizia “vou mandar fulano de tal”, alguém que tinha poder de mando. Falava com o prefeito e quando vinha alguém para falar que não falava em nome do prefeito. Era a maior dificuldade. Não tinha condições nessa época. Ao mesmo tempo um trabalho muito forte da igreja com as instituições que se juntavam, os sindicatos e outros, mas era muito, muito, muito, difícil. Era aquela grande confusão, a polícia que vinha pra cima quando a gente fazia uma manifestação para poder ver se conseguia uma audiência, a polícia vinha, era tipo uma guerra, briga, uma coisa degradável que acontecia.

Aida – E como foi depois desse período militar, como foram os outros períodos, como ficaram as relações com o estado, com o estado.

Zé Capina – Depois da ditadura foi ampliando as coisas, ficando mais leve o trabalho. O próprio estado no caso se esforçando, já abriu mais para a discussão, às vezes já participava das audiências, mas muito… não é questão que deixasse a desejar, mas faltou também o próprio governo do estado aqui, já tivemos governos mais democráticos que ampliaram um pouco a luta, mas que não chegou no objetivo que o povo precisa mesmo, que diga “a questão é essa aqui e a partir de hoje a pesquisa está aqui, hoje o trabalho vai ser desse tipo”. Ainda não aconteceu. Eu espero que agora com esse novo trabalho que você está trazendo, que essa nova pesquisa que a gente possa ter algo mais sério, que o governo brasileiro, os governos estaduais que eles possam não fazer essa intervenção que eles acham que deve ter, mas a intervenção que o povo precisa para que seja feita, para normalizar as coisas. Hoje nosso país se encontra nessa situação porque há um grande descaso para se trabalhar como deve ser feito, a pesquisa da água, o transporte, para que crianças estudar. Fica difícil. Hoje estamos apostando de novo nisso, vai ser muito bom, você chegou numa hora boa, numa hora precisa para que a gente juntar de novo as coisas, essas memórias, essas ideias e que sejam mais levadas mais à sério e que o governo e as instituições se responsabilizem mais por isso.

Aida – Tem mais outra coisa que você queira falar? Alguma coisa eu você se lembre? 

Zé Capina – Sim, eu me lembro também que na época em que nós juntamos a luta pra reforçar, nós fizemos vários movimentos aqui. Coloquei no início a questão da CPT, as associações, o movimento sindical. Dentro desses movimentos, nós criamos, tínhamos vários encontros que a gente fazia para poder juntar o povo para se organizar e para reforçar a luta. Tínhamos um Encontrão de Lavradores, um encontro que tinha de ano a ano, nós fazíamos dentro da região, juntava toda a região – 400, 500, 600 pessoas -, fazíamos isso junto com a igreja, sindicatos e até movimentos políticos, mas não partidários, políticos que se juntavam pelos direitos sociais. A gente juntava esse povo, o Encontro do Anilzinho, já foi mais feito sobre a questão da terra, conflitos que tinha dentro da Nova América, no próprio Anilzinho, uma localidade lá de pessoas nativas da terra, foi feita uma luta muito forte lá. Foi criado nessa época, um grupo folclórico aqui chamado Zé Capina, por conta do meu nome é Luiz Gonzaga da Cruz, mas esse Zé Capina é um personagem que foi criado por nós, pelo Raul da prelazia de Cametá da CPT, junto com o Chicão que foi um sindicalista autêntico nosso, presidente do sindicato aqui, que organizou muito, ajudou a gente, e nós fizemos isso e eu era o personagem que fazia esse folclórico, uma mulher rural com enxada, com o rosto coberto de máscaras e 25 crianças que faziam aquela festa, aquela organização junto do povo, para ir organizando o povo.

Aida – Você fazia uma educação de base?

Zé Capina – Fazia uma educação de base. Foi muito bom nessa época, inclusive para ganhar o sindicato, nós tínhamos esse grupo, chegávamos nas delegacias sindicais, nas comunidades, cantando, alegre, ficávamos nas comunidades, e isso ajudou muito nessa questão organizativa, para tomar o sindicato na época. Foi muito bom participar disso. Agradeço muito a você que também foi uma pessoa que batalhou demais aqui conosco, e com isso fico honrado de você lembrar da gente para fazer essa memória. Inclusive temos músicas que…

Aida – Nessa luta você também foi vereador?

Zé Capina – Fui vereador na luta, fui presidente do sindicato, e com isso ajudou muito. Entre essas músicas eu fiz “A Vitória do Anilzinho”, “A história do Anilzinho”. Com essas músicas fui pra barragem, tentar fazer essa discussão lá, para a energia vir, porque estava já numa faixa de 16 anos a barragem feita aqui na nossa região, e não tinha energia, tinha parte de Tucuruí que é dentro da a cidade e não tinha energia, fomos obrigados, foi preciso se organizar, batalhar, lutar para que essa energia viesse.

Aida – Mostrando que o projeto não era para o desenvolvimento daqui.

Zé Capina – Não, não era para o desenvolvimento daqui. Antes disso tentaram fazer a eletrificação rural, não apareceu. Depois Luz no Campo, mas só ia para o campo do fazendeiro. Depois veio Luz para Todos e, com certeza, a partir daí surgiram as organizações, fomos fazendo as manifestações, e batalhando mesmo para que a energia chegasse às propriedades de quem mais precisa. Foi através da nossa luta, foi preciso forçar na luta e quero agradecer a você que foi uma pessoa que nos ajudou bastante.