Entrevista com Bernardo Krommendijk

Entrevista com Bernardo Krommendijk, engenheiro agrônomo e assessor da Prelazia de Cametá no período de 1975 a 1985. Acompanhou todos os movimentos dos atingidos pela barragem na região do Tocantins na condição de agente do processo educativo no Baixo Tocantins. Bernardo fez muitos registros visuais de manifestações de trabalhadores rurais em Cametá, com uma pequena filmadora. Estas imagens eram, em seguida, apresentadas aos trabalhadores rurais, servindo para auxiliar na formação política dos sindicalizados.

Fonte dos dados biográficos: João Batista Wanzeler, Educação em Movimento, Trabalhadores Rurais e Formação: um estudo sobre lideranças no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Cametá/PA (décadas de 1970-90), Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura, na linha de pesquisa Educação Básica, Tecnologia, UFPA, Campus de Cametá, Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura- PPGEDUC, Cametá, 2015.

Entrevistadora: Aida da Silva Data: março 2018

Entrevistadora: Bernardo eu queria que tu falasses da memória que tu tens desse período que vai do início da construção da barragem às lutas que o povo fez aqui na região do Tocantins.

Bernardo: Bom, Ainda. Em 1975, nós chegamos aqui novatos, vindos da Holanda, e nós fomos no primeiro tempo conhecendo a realidade daqui, como eram as coisas que me mostraram na época, 75, final do ano, foi o início da construção da barragem de Tucuruí, que tinha iniciado em 74. Então ainda estava num processo bem inicial. Nós fomos visitar lá, conhecer alguns técnicos que mostraram tudo, a maquete do projeto e tudo mais. Aí, na época, conhecendo alguma coisa e já tendo lido sobre as barragens de Curuá-Una ou alguma coisa assim, e lá de Suriname, eu fui pesquisando mais nos livros na época disponíveis para ver o que é que acontece quando um rio do porte do Tocantins, com mais de 20 mil metros cúbicos passando por segundo na época da chuva, que efeito tem isso sobre o ambiente. Nos rios pequenos, das outras barragens, o impacto já foi bastante grande. Então nós fomos desenvolvendo pensamentos sobre o que poderia ser feito sobre uma barragem deste tamanho, 8 milhões de megawatts em Tucuruí, sem nenhuma preparação para o povo. Não se falava nada, só era “progresso”, “ a barragem de Tucuruí, progresso pra todos!”. Aí fomos pesquisando, pesquisando: o que vai acontecer com o povo acima da barragem? “Todo mundo vai ser deslocado” – mas quantos? “Ah, não sabemos ainda o tamanho do lago, vai depender de muitos cálculos ainda” – e abaixo da barragem? Como é que vai ficar? o rio vai secar temporariamente para encher o lago? Não vai secar o rio? E a água do oceano vai invadir o rio Tocantins? Não vai invadir? O que é que vai acontecer? Quais são os dados técnicos que vocês têm sobre os impactos de fechar um rio deste porte durante no mínimo três meses? Ninguém sabia dar resposta. Aí, junto com alguns colegas nós desenvolvendo um discurso, em que nós colocamos, para os ribeirinhos a baixo da barragem, como também o pessoal acima da barragem, as possíveis consequências que a barragem poderia trazer.

Lá em cima, a situação estava “mais clara”, vamos dizer. A água ia subir 74 metros e milhares e milhares de pessoas teriam que sair das casas. Para onde? Ah, tudo ia ser resolvido pela Eletronorte: acabaram sendo 5 mil famílias que tiveram que ser deslocadas. Muitos, primeiro, não quiseram ir; depois foram colocados, vindo de terras boas, bonitas, colocados em assentamentos com qualidade de terra “péssississima”. Então houve acampamentos de milhares de pessoas nas ruas de Tucuruí, das pessoas que não tinham pra onde ir e nem perspectiva de viver na terra onde eles estavam morando, porque a agua já vinha subindo. Então isso foi uma luta; uma vida dentro desses acampamentos que só pode ser comparada com situações que se vive na Síria hoje em dia ou que se vive em lugares de guerra. Foram milhares de pessoas vivendo da miséria nas ruas de Tucuruí; sem água, carregados por caminhões ou por caminhonetes, uma situação desesperadora.

Muitos políticos vindo… e só promessa; só promessa por parte da Eletronorte de que tudo ia ser resolvido, tudo ia ser resolvido. Mas nada era resolvido, só pra já adiantar, eu fui visitar em 2005, a barragem de novo em Tucuruí, fazendo uma filmagem pela televisão holandesa, e ainda encontramos centenas de pessoas que não foram reassentadas. Imagina! 2005, vinte anos depois do fechamento da barragem. E, por cima de tudo, a gente tinha desenvolvido todo um discurso pra conscientização do povo. Era no tempo das comunidades eclesiais de base e estávamos trabalhando pela CPT, Estávamos informando o povo sobre esse grande empreendimento, que era construído em função das fábricas de alumínio, beneficiamento de bauxita em alumínio em Barcarena, e lá estava sendo construído o porto de Vila do Conde, de onde ia ser exportado todo o material produzido. E para poder fazer funcionar essas fábricas, o governo tinha prometido em 1 de janeiro de 1985, ter a energia disponível para Barcarena.

Então, quando o movimento tentou parar a construção da barragem em 1984, porque não tinham sido cumpridas as promessas de reassentamento, de tudo, do povo acima da barragem, houve uma manifestação muito grande de povo correndo pelas ruas de Tucuruí até o início da barragem. Aí foi todo mundo barrado por um aparato militar que fez pensar numa guerra.

Não conseguimos entrar. Foi só uma delegação lá dentro, entre outros o don José Elias e vários representantes dos movimentos dos atingidos. Negociaram, negociaram, negociaram, muita promessa, mas até ser resolvido, isso demorou muito.

Quando chegou o dia 5 de setembro de 1984, a barragem estava todo o tempo sendo construída, a Eletronorte em imprevisto resolveu concretar a passagem de agua por de baixo da barragem. Jogaram concreto, processo irreversível, e de uma hora pra outra, o rio abaixo de Tucuruí secou. Foi até Ituquara praticamente; 100% seco. E de Ituquara pra baixo, ela foi baixando bastante até chegar na altura de Mocajuba, onde a influência da maré, do oceano, continuava deixando uma água no rio, ninguém tinha conhecimento da data do fechamento da barragem mas foi feito de forma “bem inteligente” entre aspas, porque na véspera, quando todo mundo descobriu que o rio estava secando, começava dia 7 de setembro, feriado, depois um sábado, depois um domingo, e ai, pra entrar na justiça pra reverter o processo se tornou impossível. Porque o concreto já estava feito. Aí levou 3 meses até o dia 24 de novembro para o lago encher. Essa foi a parte de cima.

Logo nos primeiros momentos, abaixo da barragem a Eletronorte falava sempre que não ia ter consequência nenhuma. A primeira então, já falei, foi o secamento do rio de Tucuruí até Ituquara, quase 100 km de distância. Até as próprias balsas da Eletronorte ficaram encalhadas no fundo do rio, barcos de particulares, tudo. Como ninguém foi avisado, nem os barcos puderam ser tirados; muito prejuízo, porque barco de madeira que fica 3 meses no sol quente acaba ‘tudinho’.

Aí a baixo de Tucuruí, fizemos muitas discussões, muitos atos públicos para falar sobre as consequências abaixo de Tucuruí, abaixo da barragem. Uma delas foi a questão da seca do rio. Aconteceu de fato, só não chegou até Cametá porque Cametá fica a nível do mar – o fundo do rio – então não secou o rio.

Mas outro problema que sempre foi ventilado também: essas fábricas de alumínio que funcionam em Barcarena vão se tornar um desastre ecológico, porque a lama vermelha que antigamente era jogada nos mares lá pro Japão, China, pra onde era beneficiado o alumínio. Os movimentos de meio ambiente não aceitavam mais as poluições nos países deles, então o jeito era beneficiar a bauxita aqui em Barcarena. Depositar precariamente a lama vermelha, o lixo que sai do processo de beneficiamento. E aí, de vez em quando, soltar pro rio pra poder esvaziar os depósitos. Isso já aconteceu nesses últimos 30 anos, 30 e poucos anos muitas vezes. E bem recente, faz talvez menos de 15 dias, que uma liderança em Barcarena, que já lutava a muito contra a poluição pela lama vermelha dos rios de Barcarena foi assassinado. Foi calado pelo pessoal que não quer que se organize os moradores em volta das fábricas de bauxita. É um problema anunciado em mais de 30 anos e até hoje está acontecendo.

E a barragem, em função principalmente de Barcarena, foi o primeiro beneficiado, é só imaginar que em 1985 a barragem começou a gerar energia e em 1995, 10 anos depois, as cidades em volta de Tucuruí, a menos de 200, 300 km não tinham energia de Tucuruí. Foram outros movimentos grandes pra conseguir energia para as cidades, imagina pra área rural.

Isso só começou a acontecer no governo Lula com os projetos Luz para Todos. Até esse programa, os moradores e os pescadores e os ribeirinhos não tinham nenhum benefício dessa barragem. E, pior ainda, até hoje não tem luz pública nas ilhas; só em Cametá. O município de Cametá tem mais de 100 ilhas no meio do rio Tocantins. Não tem luz pública; alguns conseguiram de uma ou outra forma pegar energia da rede. Mas não tem um sistema de luz pública, pra mais de talvez 30 mil pessoas que moram nas ilhas e vivem do açaí e vivem da pesca.

É uma situação muito precária e não tem solução em vista. A não ser que o próprio povo se reúna e faça o seu jeitinho, isso é bem jeitinho mesmo, de estar ligando a luz nas ilhas à rede que vem de Tucuruí. Mas, lógico, é um sistema que vai sobrecarregar em alguns lugares, vai dar prejuízo pra outros. Mas o povo depois de tantos anos está cansado. Depois de muitos anos está cansado de esperar a energia.

Um outro ponto antes de talvez dar uma parada é a questão da pesca. Acima do município de Baião, a pesca minimalizou, não existe mais a época de desova de peixes que era prevista pela natureza. Hoje em dia quem decide se o rio sobe ou desce é a Eletronorte. Não é mais a natureza que marca, e o instinto dos peixes é a natureza. Então hoje é possível que a Eletronorte solte 5 dias uma quantidade de água alta, pra depois fechar de novo. Ai o peixe já não sabe mais. Então todo ano, há grande quantidade de ovos na beira do rio, que são áreas rasas. Para os outros não virem comer, secam no sol quente quando a agua baixa e tudo é perdido, isso resultou uma redução da quantidade de peixe por mais de 60%. Hoje temos 40% do volume de peixes que tinha antes da barragem. E de várias espécies. Se fala em mais de vinte espécies que simplesmente não existem mais aqui no rio Tocantins. A abundância de peixe que tinha antes da barragem, como efeito da própria barragem acabou. Ainda temos, fora a questão do peixe que diminuiu, todo o ano, quando as comportas de Tucuruí são abertas, a água corre em mais abundancia e temos o problema da poluição do rio. A água que ficou meses parada dentro do lago chega aqui nas ilhas de Cametá, Mocajuba, Limoeiro, e dá muitas algas e uma coceira, coceira, coceira que ninguém aguenta. Como todo mundo depende do rio para tomar banho, então todo mundo tem que se sujeitar a esses banhos com muita coceira.

Água potável, nem imaginar porque a água do rio pode ser bebida. Todo mundo depende de água; pega nas torneiras, nas cidades, nas vilas em volta, porque simplesmente o que era uma história de séculos do povo tomar água limpa do rio Tocantins não existe mais. Então a qualidade de água pra população ribeirinha que já falei, só no município de Cametá são mais de 30 mi. Mas contando também com a população de Mocajuba e Limoeiro são muito mais ainda, que simplesmente é excluído da água potável.

Pouquíssimas experiências foram feitas pra colocar poços ou colocar sistemas de purificação de água nas ilhas, mas são muito poucos que funcionam por mais de um ou dois anos. Além disso, ainda temos que falar da área acima da barragem. Voltando um pouco atrás, na época do enchimento do lago, os primeiros anos depois, tivemos a formação de mururé dentro do lago. Criou uma quantidade de carapanã que ninguém ali sobrevivia na beira do lago. E todo o povo era assentado nas vilas na beira do lago; então muita, muita gente teve que correr e abandonar as terras porque simplesmente as condições de sobrevivência eram impossíveis.

Pergunta: Bernardo, você toma um golinho ai da tua cerveja e nós vamos pro segundo round dessa entrevista, as lutas dos atingidos que ocorreram depois, pelo desenvolvimento da região, como é que você vê essas lutas e esse desenvolvimento hoje?

Bernardo: Bom, infelizmente, as lutas foram amortecidas pelo tempo. Muitos, hoje em dia, talvez metade ou mais da metade da população nem lembra da situação antes da barragem. Não tem mais memória da abundância da pesca, da qualidade da agua pra tomar banho, pra beber. Era uma maravilha, era uma natureza pura. E os que ainda lembram já estão todos com a idade avançada e já estão cansados de esperar, de tanta promessas que foram feitas no tempo da barragem e de tantas providencias que iam ser tomadas pela saúde, pela educação, por tudo que era necessário pra manter uma população trabalhando na área rural. Não adiantava todo mundo ir pra cidade, mas muitos, muitos cansaram. As lutas nos anos 1980, organizadas, seus 25 de julho, 8 de março, 7 de abril, botavam milhares e milhares de pessoas nas ruas, nas manifestações. Todo mundo consciente desses processos da barragem e as consequências desse progresso pra uma região até então bem pacata do baixo Tocantins. A sobrevivência era tranquila, não tinha estrada, não tinha nada de fora que poderia atingir uma população que vinha evoluindo. Na época, 1975, nem luz na cidade de Cametá tinha. Então imagina, nem rádio, televisão, nada disso acontecia. De repente vem uma barragem com uma evolução tão grande, entretanto excluindo a massa da população. Os poucos que conseguiram uma vaga pra trabalhar na barragem e que eram dos municípios atingidos pela barragem eram muito poucos. A maior parte da população era trazida de fora de Tucurui, Cametá, praticamente eram todos de fora. Lógico, engenheiros e todo o pessoal técnico nem poderiam estar nessa região porque não existia essa capacidade instalada. Mas os movimentos, na época, a solidariedade, tínhamos os movimentos de Anilzinho, que discutia a ameaça da desapropriação das terras. Porque na medida em que em 1979, 80, a estrada Tucuruí – Cametá foi aberta, a invasão de fazendeiros logo saiu solta. Muitos fazendeiros entrando, grilando a terra, desmatando, escravizando o povo. Então muitas lutas aconteceram e disso nasceu um outro movimento popular, indiretamente ligado à barragem, que era a questão do Anilzinho, a luta pela terra, terra pra quem trabalha nela. Conseguimos fazer reunião em Nova América e Anilzinho de mais de 500, 600 agricultores e agricultoras juntos, para se manifestarem pra criar a Lei do Anilzinho, pra assim impor uma auto defesa contra a entrada dos grandes fazendeiros na região. Mas hoje, você vê que os movimentos sociais começaram a adormecer. Ainda existem sindicatos, pequenas cooperativas, mas a força popular enfraqueceu bastante.

Pergunta: uma outra questão: a forma de lidar no período da ditadura e de se organizar no período da ditadura, o espaço de diálogo, e a forma de organização dessas lutas depois da ditadura, como você vê?

Bernardo: Bom, uma coisa não podemos esquecer: na época da ditadura, o guarda-chuva pra todos os movimentos era a Igreja. Aqui em Cametá tínhamos uma igreja bastante progressista. Tínhamos as comunidades eclesiais de base, tínhamos os processos de conscientização política, de formação sindical, de educação de base; equipes de saúde, de agricultura em que eu mesmo trabalhei, com áreas demonstrativas de agricultura sustentável, já cuidando, nos anos 76-77 por ai, sobre como manter o agricultor na terra e fazer um trabalho de agricultura sustentável, sem estar derrubando, queimando, destruindo a mata da região.

Nesse sentido, tem uma época até 1985, mas também depois, ainda por vários anos, em que o guarda-chuva da igreja, da CNBB, tudo isso foi um ponto muito importante para os movimentos que também eram contra a ditadura, contra o governo; uma força de apoio. Hoje em dia, a gente vê que a própria Igreja também está se afastando da questão social e se concentrando na questão pastoral. Porque pra população a questão social até hoje ainda é um dos pontos fundamentais. O que se colocava na rua, se colocava mais pela própria vontade da população que não existia dinheiro pra por 5 mil pessoas, na rua. O pessoal vinha pelo interesse por sua causa. Muitas vezes, hoje em dia, se vê manifestações que são mais assim, “organizadas”. Mas na época eram grandes quantidades de pessoas e hoje o deslocamento das pessoas é com ônibus, é com voadeira, e com transporte ágil. Na época era com canoa, era com canoa de vela. Para o pessoal chegar pra participar de uma manifestação era muito esforço, muito desgaste, porque nada na época era fácil.

Pergunta: A memória é construída por uma composição de lembranças, ao mesmo tempo que se produz esquecimento. Como os discursos sobre a experiência da UHE- Tucuruí foram sendo, progressivamente, transformados de forma seletiva em “fatos de memória”? Quanto à memória das famílias atingidas a montante e a jusante da barragem. como era a realidade dessas famílias antes e depois da barragem?

Bernardo: A montante, parte dos atingidos eram moradores de vilas na margem do Rio Tocantins, vivendo da pesca, do transporte fluvial, coleta de frutas do mato e da lavoura de subsistência. Nas áreas mais distantes do Rio Tocantins, muitos agricultores tinham vindos de outras regiões do Brasil com a abertura da Transamazônica e os vicinais. Famílias com outra cultura e história na região, mas com espírito de desenvolver em suas próprias terras uma agricultura que poderia dar sustento às suas famílias.

Depois da barragem, outras vilas eram construídas em áreas distantes da origem e muitas vezes do próprio rio. Nada pôde ser levado do local de origem. A vida tinha que recomeçar com apoio mínimo do governo (Eletronorte), e muitas vezes, só para Inglês ver que apoio era dado. Depois da filmagem o povo continuava abandonado. Os agricultores migrantes tinham que recomeçar a vida pela segunda vez em terras novas, desta vez, em geral, muito menos apropriado para a agricultura em lugares com infraestrutura precária. Quase sempre, sem apoio e sem condições de viver.

A jusante as famílias nas ilhas viviam principalmente do Rio, da pesca, e da colheita das frutas, principalmente o açaí e o cacau. Mas também a madeira era explorada para construção das casas e venda na terra firme. Depois da barragem, o volume de peixes e a variedade de espécies diminuiu muito. A pesca para o consumo diário se tornou difícil, pior ainda para o mercado. A água por longos períodos era muito poluída, provocando problemas intestinais e muita coceira. Muitos problemas de saúde com origem na água, mas sem serem reconhecidos e sem nenhum acompanhamento especial. Motivo: Governo e Eletronorte confiaram em dizer que abaixo de uma barragem não tem nenhuma consequência.

Pergunta: Quanto à memória dos movimentos de atingidos a montante e a jusante. Como iniciaram as primeiras articulações e lutas?

Bernardo: A origem das lutas acima e abaixo da barragem se deu basicamente pelos próprios atingidos; mas desde cedo com o apoio da CPT, que colocava agentes e advogado, além de logística com apoio da Igreja local. Os próprios acontecimentos de não informação e não levar em conta de toda esta população dentro de um projeto deste tamanho e impacto levou todos a se revoltarem.

Pergunta: Quanto à memória seletiva do setor elétrico em geral, da ELN em particular, como esta empresa agiu com as populações locais ante e depois de 1985?

Bernardo: A Eletronorte não considerava a população. Esta tinha que ser negada ao máximo. E quando, devido à publicidade e protestos eram de certa forma forçados, vinham com “esmolas” para calar as vozes. Mínimas providências eram previstas no projeto acima da barragem, somente para inglês ver e nenhuma abaixo da barragem. Somente propaganda sobre o progresso que vinha. Muito luta abaixo da barragem foi necessária para se colocar o linhão para Cametá, para ter energia. Nada feito em relação à água e à diminuição da pesca

Pergunta: Qual o papel desempenhado pelo(s) jornalismo(s) na produção/seleção/composição dos fatos de memória?

Bernardo: Lucio Flavio Pinto foi um dos jornalistas que conseguiu colocar matérias nos jornais locais. Dificilmente com respaldo para uma publicidade mais ampla.

Pergunta: Qual o papel da Universidade na produção/seleção/composição de fatos de memória? Como você lembra que foi a participação da Universidade neste processo?

Bernardo: Não me lembro da presença de qualquer Universidade no processo

Pergunta: Sobre os movimentos de atingidos – quais foram as forças que o constituíram; em que momentos, com que articulações regionais ou nacionais? A montante? A jusante? Quais as diferenças entre as dinâmicas dos movimentos a montante e a jusante?

Bernardo: Na época, eram principalmente da região. Através da Igreja havia também divulgação mais ampla, mas com pouco impacto no movimento local. Não me lembro se, na época, o MAB já marcava presença.

A montante os efeitos eram sentidos mais diretamente pela população devido às desapropriações e às indenizações mínimas. Qualquer impacto a jusante era negado pelas instituições responsáveis e a população esperava mais “pacientemente” para o que ainda tinha por vir, reclamando de falta de peixe, doenças e coceiras.

Pergunta: É pertinente se falar de um movimento de atingidos ou, ao contrário, de uma pluralidade de ações fragmentárias? Houve esforços de unificação destas iniciativas?

Bernardo: Devido às distâncias e à falta de condições financeiras, havia momentos de unificar lutas, mostrar solidariedade, mas manter por longo tempo uma mobilização por mais tempo era muito difícil. Principalmente a montante da barragem havia comissões para manter a mobilização, a negociação, a sobrevivência no acampamento, etc,. com o apoio de movimentos da região em momentos específicos, mobilizando milhares de pessoas. CPT e igreja local/Prelazia foram fundamentais no apoio, articulação, negociação, etc.

Pergunta: Pode-se identificar momentos de auge e declínio dos movimentos de atingidos? Por quais razões teria havido esses ciclos?

Bernardo: Ao se fechar a barragem definitivamente em 5 de setembro de 1984 havia um pensamento de ter perdido a luta. Mas não demorou muito. Pela realidade no acampamento de que era necessário se continuar lutando pelos direitos: Terra por terra! Casa por casa, etc. Isto devido à demora proposital da Eletronorte em resolver problemas criados por ela, esperando desistência e portanto diminuição de recursos para indenizações,

Pergunta: Quais os primeiros fatos indicativos de que estava havendo reação das populações atingidas pela chegada das empreiteiras frente à ELN e ao Governo?

Bernardo: Com as informações recebidas nas vilas e nas áreas rurais, de que seriam atingidas pelas águas do lago e que tinham que procurar outro lugar para viver. Informações tendenciosas, sem falar em direitos de relocação e indenização. O moto parecia ser: quantos mais se vão, menos custo para a empresa com a parte social.

Pergunta: Poder-se-ia identificar algumas iniciativas de grupos de atingidos que tivessem caráter “espontâneo”, sem vinculação com as organizações existentes da Igreja, dos sindicatos, da sociedade civil e dos partidos? A primeira reação dos vazanteiros de Itupiranga em 1979, por exemplo, não teria tido um caráter relativamente espontâneo?

Bernardo: Sem dúvida teve além de Itupiranga outros grupos com reações espontânes, a partir de vilas, comunidades diversas, agrupamentos espontâneas, mas devido as dificuldades de comunicação entre estas iniciativas, o crescimento avançou mais rápido com a entrada da CPT com transporte e mais conhecimento do que iria acontecer e como se organizar para se defender.

Pergunta: Qual o papel da Igreja – a montante a jusante, antes e depois da redemocratização?

Bernardo: Foi fundamental no processo até a redemocratização, tanto a montante como a jusante, mas com caráter diferente. A montante o problema estava sentido na pele, urgente, aonde ir, onde apelar, como sobreviver.

A jusante o papel era conscientizar, explicar o que tinha por vir, se preparar para tempos difíceis em relação à água, pesca, mares imprevisíveis, etc. O problema não era sentido ainda como questão de vida ou morte. Nem depois foi sentido como tal, apesar de muitas mortes e doenças com origem nas águas poluídas.

Pergunta: Qual o papel das organizações sindicais a montante e a jusante, antes e depois de 1985?

Bernardo: Os Sindicatos na região foram tomados dos pelegos nesta época. A a montante, o problema da barragem com reassentamento, indenizações, etc, era questão fundamental e unificador da luta. A jusante a questão da barragem também unificava, junto com os problemas de terra (tratados na experiência da Lei do Anilzinho). Muitos momentos de solidariedade entre os sindicatos eram organizados.

Pergunta: Houve mudanças visíveis na capacidade de agir e de se fazer ouvir dos movimentos entre antes da redemocratização de 1985 e depois? E as ações do Estado (União e governo estadual), mudaram entre antes de 1985 e depois?

Bernardo: Muito pouco. Com a força dos movimentos, os governos tinham que ceder aos poucos, mas minimamente, tanto antes como depois de 1985. Nunca, entretanto, uma mudança radical para resolver de vez todo o problema. Ilustrativo disso é que em 2005 ainda tinha atingidos acampados na porta de Eletronorte.

A jusante o impacto nunca foi reconhecido formalmente. Como esmola, algumas comunidades receberam escola com sistema de purificação de água, mas comparado com o desastre criado, é nada.

Pergunta: E a estratégia da ELN mudou comparando-se antes e depois de 1985?

Bernardo: Minimamente. Nunca estavam a fim de incluir a questão social no projeto na sua dimensão real com explicações claras e medidas preventivas e curativas depois do acontecido. Somente medidas paliativas, enquanto os danos são incalculáveis e continuam acontecendo, com ritmo de vazão irregular, águas poluídas, e ainda por cima empresas que recebem de graça a energia ou por preços subsidiados, enquanto poluíam as águas na região de Barcarena com “lama vermelha”.

Pergunta: Como é possível de se falar de memória coletiva de um conjunto de eventos tão abrangentes alterando a vida das populações locais, a paisagem, a ecologia quando sabemos que então a esfera pública estava fechada e a circulação de informações reprimida?

Bernardo: A memória coletiva ainda precisa ser montada a partir de trabalhos como esta pesquisa. Já é tarde, porque muitos que lutaram já faleceram, mas mesmo assim melhor tarde do que nunca, porque outras barragens na região amazônica estão por vir…

Pergunta: Qual a periodização básica – os grandes marcos temporais da cronologia – que você faria para retratar o histórico da relação entre a ELN e os atingidos pela UHE-Tucuruí?

Bernardo: Por cima de tudo destacar que a Eletronorte preferia negar 100% a população atingida. Não constavam no projeto. Falava-se em terras e matas cobertas por água, inclusive vilas. Mas onde era possível negar o ser humano e os animais? As grandes manifestações, a pressão na imprensa, onde possível, as manifestações no exterior de movimentos de meio ambiente, mas principalmente a coragem dos atingidos de enfrentar a cada momento o grande devastador a-social que só agia em função do grande capital, foram fundamentais para fazer governo e Eletronorte ceder minimamente em favor dos atingidos, principalmente a montante. A jusante, os investimentos feitos para amenizar o impacto foram mínimos.

Até o fechamento da barragem, a organização foi crescendo e se fortalecendo. Depois do fechamento, também se capacitando mais para enfrentar o adversário com cada vez mais qualidade e conhecimento, forçando até Brasília entrar nas negociações.

Pergunta: O que seria importante um projeto destinado à memória do caso da Usina de Tucuruí produzir para a sociedade?

Bernardo: Juntar o que já foi escrito neste últimos 40 anos sobre Tucuruí e os seus impactos, sempre colocando de um lado o “projeto bonitinho” que era feito para evitar o confronto com os atingidos, e, de outro lado, o sofrimento que os atingidos tiveram que sofrer para no final muitas vezes não receber minimamente pelo que foi perdido.

Poderia ser algo na linha de “Nunca Mais”, comparando o tempo da ditadura com o tempo de Tucuruí.

Entrevistadora: Obrigada, Bernardo.